quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Foi naquele São João que a vida toda da moça que vos escreve mudou.
Naquele São João tão frio, que até névoa se formou no céu azul escuro. O esbranquiçado lá no alto parecia a fumaça gelada que saía da boca quando a gente cantava em volta da fogueira laranja.
E pensar que a vila é tão pequena, que não tem um que não se conhece desde sempre. Tem uns forasteiros, que vem de longe procurar nossa calma. Mas eles acabam virando tão queridos, que é difícil achar que não os conhecemos desde sempre também.
Ele eu de fato conheci de pequena. A gente brincava junto na lama, se banhava junto no rio. Andava de bicicleta e ralava o joelho. Comprava pão e corria pra casa tomar café da manhã. Eu lembro até que, a primeira vez que empinei pipa, foi com ele. A gente tinha uns 6 anos e tava com o corpo duro de tanta lama seca. As rachaduras formavam desenhos na pele e traduziam um pouco da felicidade daqueles dias.
A criançada toda se reuniu na rua, com os olhos brilhando ao ver, pela primeira vez, aquele brinquedo mágico feito de papel e palito de churrasco. Mas o mais incrível era a rabiola, feita de saco de lixo. Aqueles pedaços pretos, recortados para voar e balançar no ar, eram a definição de alegria. Não lembro ao certo se foi um forasteiro ou algum de nossos parentes que trouxe a tal pipa, o que sei é que passamos longas horas dirigindo aquilo pelo ar, controlando seus movimentos, sua altura e seu balançar. E ríamos a cada vez que o vento parecia cessar de propósito, fazendo ela cair e levantar poeira nos nossos olhos pequenos.
Fomos crescendo e começamos a estudar. A escola daqui não é como a escola de lá. Aqui, os adultos juntam seus conhecimentos, seus livros, suas histórias e lendas, explicando de forma simples e pura tudo o que sabem. E tudo o que acham que é importante que saibamos, seja pra continuar ali na vila, seja para se jogar no mundo. Nos reuníamos na pracinha todo dia, sentados sobre os próprios pés, ora em forma de roda, ora em grupos, ora em qualquer posição que desse pra escutar todo mundo. Passávamos ali boa parte do dia, entre conversas, comidas, sonecas e muita brincadeira. Assistíamos ao pôr do sol juntos, agradecendo por mais um pôr do sol. E seguíamos correndo para casa, com nossos pés ou as rodas de nossas bicicletas.
Lembro claramente de sempre nos sentarmos um ao lado do outro, não importasse a formação que escolhêssemos. Era sempre confortável, sempre confortante tê-lo tão perto.
Nunca falamos sobre isso. Só nos sentávamos, automaticamente, de formas que nossos corpos se esbarrassem a qualquer movimento que tomasse um diâmetro maior.
Todo o conhecimento que absorvi dessa época, guardei bem guardado aqui dentro de mim. Até pouco depois desse São João frio, tinha usado-o aqui na vila. Me tornei professora das novas crianças que vieram depois de mim e sempre me bastou viver aqui, educando as crianças na esperança de que elas educassem o mundo.
Ele também permaneceu. Se tornou marceneiro e toda madeira da vila que era tocada pela natureza, também era por ele. Fazia barcos, janelas, portas, balcões. Aprendera com orgulho e maestria a profissão de seus pais. Perpetuou as tradicionais entalhações que lhes eram marca registrada e enfeitavam a vila de forma sutil e poética.
Virar adulto as vezes afasta a gente do outro. Parece que a maturidade e as responsabilidades trazem consigo paredes invisíveis que eclodem entre as pessoas. Mesmo em comunidades tão ao ar livre quanto a nossa. Em resumo, nos falávamos socialmente, quando eu precisava que ele escrevesse em alguma madeira ou quando nos cruzávamos na padaria. Banal.
Mas naquele frio São João, as paredes implodiram. Eu ainda não sabia, naquele momento, que não voltariam a subir.
Olhar para o céu naquela noite estava especial. A névoa se misturava com a tinta azul escuro que pintava o infinito e era possível enxergar pequenas faíscas do fogo, que enfeitavam a imensidão.
As crianças corriam, os adultos se sentavam ao redor da fogueira contando causos novos e antigos, fazendo espetos de marshmallow derretido. As comidas eram sempre fantásticas. E a gente só percebe quão saboroso e incrível é o gosto do natural, quando se pega comendo o que querem que a gente coma. Não há nada como o gosto da terra, da água, do sol. Nada como o gosto das mãos que tocam o alimento, sabendo que nele há vida.
Enquanto eu pegava um espeto da fogueira, senti alguém se aproximar e sentar ao meu lado no banco.
Retornei o corpo e ele inteiro sorriu, não consegui disfarçar. Era ele e, por algum motivo, me senti tão confortável quanto me sentia nas aulas. Só por ser ele.
O corpo dele também sorriu. E seu rosto se abriu em um sorriso limpo, puro e inacreditavelmente sincero.
Ofereci um marshmallow e, encantada, observei-o comendo com gosto, feito criança.
Elogiamos o céu, agradecemos por ter sido criados na vila, comentamos sobre Gabriela, que acabara de se casar com Pedro e ambos se mudaram de lá. Até que ele me perguntou:
"E aí dentro, não há vontade nenhuma de sair daqui e desbravar o mundo?"
Estremeci. Essa pergunta sempre esteve em mim, mas nunca havia sido entoada em voz alta. Ele fez a vontade que parecia imaginação, virar realidade. Me demorei em seus olhos e respondi, trêmula, que pensava nisso com certa frequência.
Ele riu e pediu que eu não me preocupasse, a mesma vontade rondava seus pensamentos e não era ingratidão querer sair da vila. Ingratidão era permanecer mesmo quando ela não cabe mais em nós.
Me senti abraçada. Me perguntei como essa conversa só tinha acontecido agora. Me aborreci, quieta, por essas paredes que criamos ao crescer. Mas agradeci por elas terem ido embora.
Continuamos conversando. Estava tarde e no dia seguinte acordaríamos cedo. Ele sugeriu me levar até em casa e começamos a caminhar.
Dentro de mim, começou a surgir um medo enorme de voltar àquela realidade costumeira, onde nos cumprimentávamos socialmente e cada um ficava no seu canto. Eu queria mais. Não sabia ao certo o que eu queria, mas era mais. Queria que as noites de São João se repetissem, sempre com ele sentado ao meu lado, de frente para o fogo.
Como se adivinhasse meus pensamentos ou compartilhasse deles, parou na estrada, olhou em meus olhos e pediu:
"Não voltemos ao que éramos antes. Não quero que sejamos rasos, quero profundidade. Quero poder sempre olhar nos seus olhos e rir sobre a vida."
Em um impulso, beijei-o. Não sabia se era certo e se ele relutaria. Mas ele se entregou e se aproximou, envolvendo seus braços no meu corpo e as mãos no meu cabelo. Isso provocou em mim algo que eu nunca havia sentido. Senti faíscas, senti euforia, senti conforto, segurança, senti amor.
Não sabia, no momento, que era amor aquela mistura de sentimentos, sentidos e emoções. Mas fui descobrindo aos poucos.
A cada cruzada de olhar que dávamos durante o dia, cada visita ao rio de noite, cada madrugada na cama, cada café da manhã sob o sol, cada novo plano sob a lua.
Era paixão, da mais sincera que eu poderia experimentar. Mas queríamos mais. Queríamos gritar pro mundo, correr nas praias, viajar pelas estradas, conhecer outras comidas, olhar outros céus.
Entendemos, conjuntamente, que a Vila não cabia mais. Que tínhamos expandido nossos universos e era questão de sobrevivência colocar essa expansão na prática.
Nos despedimos de todos na beira do rio, à luz de velas, com muita música. As lágrimas de saudade eram, ao mesmo tempo, de libertação. Aquele era o último momento antes de começarmos uma caminhada fantástica.
Hoje é dia de São João. Ele está com nossos filhos correndo em volta da fogueira. Decidimos retornar à Vila em todos os dias de São João que fossem possíveis.
Porque foi naquele São João que a vida toda da moça que vos escreve mudou. E a vida do moço que observo, também. 

terça-feira, 26 de julho de 2016

Do meu corpo, o tempo todo, tentam fazer morada.
Mas nem todas as vezes é pedida permissão para chamá-lo, tocá-lo, adentrá-lo.
Algumas vezes é um professor do primário, um conhecido da faculdade, outras um desconhecido na rua, outras mais, um desconhecido na balada.
E por tanta gente tentar entrar sem bater, cuspindo elogios que eu não pedi, fazendo carinhos que eu não assenti e passando limites que eu não admiti, que eu tenho m e d o.
Qualquer viela escura é uma tortura para passar de noite sozinha. Qualquer saia curta pode ser entendida como um convite. Qualquer foto nua me faz uma vadia.
E de vadiagem em vadiagem, de saia em saia, de viela em viela, o abuso é uma constante.
E se já não bastasse tudo isso, sou o b j e t o . Sou máquina de lavar louça, máquina de cuidar de filho, máquina de sexo, máquina de cerveja. Máquina, máquina, máquina.
E ai de mim se não estiver magra, sem celulites, sem preencher sutiã 46, sem marquinha de biquíni, sem depilação em dia. Qualquer gordurinha, qualquer pelinho, qualquer vontade própria, qualquer libertação, qualquer foda-se que eu der pro mundo, não sou feminina, não sou mulher, não sou bonita, não sou d e s e j á v e l.
Deixo de ser máquina, máquina, má qui na.
Vomito, vomito, vomito. Paro de comer, tenho que malhar. Paro de beber, tenho que me operar. Tenho que encaixar na calça 34, no sutiã 54 e ainda servir jantar com cerveja.
Mas engordei um quilo, que homem vai me querer assim? Como alguém vai gostar de mim? Como vou engravidar, se não consigo nem me cuidar?
Mas eu não quero ter filhos. Já engravidei e abort shhhhhhhhhhh, ninguém pode saber dessa vergonha. Na hora tava bom, né?
Eu devia ter continuado a gravidez. Hoje eu teria 21 e ele cinco, quase seis. Eu teria parado de estudar, não teria ido viajar, estaria em casa botando ele pra dormir. Teria desistido de vários sonhos, deixado de conhecer várias pessoas, mas pelo menos teria sido mulher de verdade, capaz de assumir.
Eu tomava anticoncepcional e tomei cuidado, mas sabecomé, a culpa é minha e só minha e só m i n h a.
Aliás, culpa deve ser um sentimento que tem alvo determinado. Porque é incrível como ser mulher causa esse negócio na gente.
Se eu saio na viela escura, com uma saia curta e tenho foto nua, se alguém invadir minha pele sem que eu queira, a culpa é minha. Se eu saio da dieta pra num desmaiar de fome, a culpa é minha. Se eu não tenho dinheiro pro silicone, a culpa é minha. Se eu não sou como a mulher da propaganda de cerveja, a culpa é minha. Se, com 16 anos, eu sou incapaz de ter um filho, a culpa é minha. Se eu não encontro um homem para casar e ser a dona do nosso lar, a culpa é minha. A culpa é minha, a culpa é minha, a culpa é m i n h a.
Mas, sabe... de tanto ser vadia, puta, desleixada, fraca, inútil, desbocada, gorda e mal amada, percebi que sou o melhor que posso ser. Percebi que essas palavras, na minha boca, no meu eu, na minha concepção, tem outros sentidos. Tem outros s i g n i f i c a d o s.
E se isso é uma luta diária e cansativa, se fazer todo mundo entender que a gente tem que ser como quiser é uma batalha eterna, que batalhemos. Que usemos nosso corpo, nossa voz e nossa vontade de mudar como armas e escudos. Porque aqui, ninguém mais vai mandar em mim, ninguém mais vai tentar me invadir sem me ouvir GRITAR.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Respeitável público!!!
Damos início esta noite ao maior espetáculo circense que a sociedade já viu!
Mas no nosso circo, o palhaço é você. Tente tirar muito proveito desta experiência única, porque o ingresso não foi barato, não! Além disso, na saída cobraremos taxas, encargos e outros valores ilusórios, que disfarçaremos de colaborações por bom serviço prestado.
Não se acanhe, passamos cartão e parcelamos em 10 vezes.
Mas não pense que o circo nunca fez nada parecido. É fato que, para montar este esplêndido espetáculo que estão prestes a vivenciar, muita pesquisa foi feita e muitas referências usadas.
Pensando bem, dependendo de quem você é, o que você faz, de onde você veio e quanto dinheiro tem na conta, o formato que propomos não é tão estranho à você ou às gerações anteriores às suas.
Dependendo dessas mesmas características, você pode ter sido, ainda ser ou ser mesmo que sem querer, parte do nosso majestoso elenco.
Agora, sem mais delongas, estou ansioso para começar o fantástico espetáculo, que vibra com cenas de pobreza extrema, preconceito religioso, racial, sexual, econômico, se diverte com fortes cenas dramáticas causadas pela fome, além de torturas inacreditáveis e muito mais!

Sejam muito bem vindos ao espetáculo M.U.N.D.O.
Os poros da pele se abrem lentamente. Os pelos se levantam. A espinha esfria, o corpo treme aos poucos.
A pele na pele esquenta cada pedaço de mim. É quase um teletransporte. Saio do mundo e entro em nós. Nos entrelaçamos como dois animais sedentos por contato, por suor, por gozo.
É instintivo querer te puxar para dentro de mim, querer que você seja uma parte do meu eu.
Sabe, tenho poucos vícios... A maioria se mostra, ao longo do tempo e com o desgaste da fixação, mero hábito. 
Alguns até causam certa abstinência quando chega a hora de largar, mas em todos estes casos o suor frio e as crises de choro que a falta faz valem mais a pena do que as amarras e cortes materializados pela presença.
Os vícios saudáveis, mesmo que um dia se mostrem hábitos também, acabam se tornando riscos na pele. 
Gosto da dor. Gosto da dor das tuas mãos apertando minha carne, gosto da dor dos teus dentes cerrando meus lábios. Gosto da dor da tua palma na minha bunda. Me contorço, grito, molho.
E gosto, também, da dor da marca na pele e na alma. A tatuagem na pele é a materialização de algumas das coisas que têm tanta importância, que me parece justo eternizar nas paredes do templo.
Mas existem coisas, como você e seu poder sobre mim, que se concretizam por meio de tatuagens na alma.
Não sei se para sempre ou até quando, mas teu toque, teu cheiro, teu gosto e teu eu me viciaram. É droga das pesadas. A ausência provoca pequenas crises de abstinência que, até agora, só me excitam a querer mais e mais. 
E é por esse poderio - que poucas pessoas conseguem ter sobre mim, porque fui adquirindo ao longo das relações uma incrível capacidade de imunidade -, que você deixou marcas. 
E tudo é efêmero, menos as marcas que as coisas pessoas cheiros toques gostos gozos deixam em nós.
E você marcou como poucos. Até desisto da minha imunidade se for para ter você ao lado.

terça-feira, 28 de junho de 2016

E eu que não espero nada das coisas, passei a esperar você no portão.
Eu que temia deixar a porta da entrada aberta, hoje anseio abrir o coração.
E não é nada em específico que causa tudo isso em mim. É uma mistura de cada coisa que foi, que é e que pode ser.
É um conjunto, em partes real, em partes fantasia.
E dá um frio na barriga voltar a fantasiar... Fazia um tempo que a fantasia ficava só na fantasia.
Amedronta tirar a máscara, sair do personagem, se permitir esquecer as falas. Seguir o roteiro parece mais sensato na maioria das vezes.
Mas como pensar em roteiro se tudo começou de cabeça pra baixo, no meio de um vapor que embaçava a ordem? Se o encontro foi a definição mais pura da incerteza, da loucura, quase uma afronta ao script?
Mas não vejo o roteiro com maus olhos. De certa forma algumas ligações anteriores foram essenciais. Não haveria de ser assim, se não tivesse sido daquela forma.
Mas por sorte não será fôrma. Já me bastam muitas caixas, muitas bolhas, muitas paredes. Me falta o ar livre, o pensamento livre, o amor livre. Me falta quebrar muitas e muitas amarras que me puxam pra nenhum lugar além do passado.
É um passado amargo e distante, que feriu e ainda teima em reabrir as feridas. Mas é passado. Seu lugar é no antes e na não repetição no hoje, mas nunca deve ser o hoje. O hoje deve ser... Livre.
E se a liberdade me fizer sentar e esperar no portão, se for capaz de destrancar portas e fazer da rotina uma eterna inconstância, que sejamos livres enquanto nos permitirmos ser.

domingo, 26 de junho de 2016

Há o bem e o mal. 
Há dois lados antagônicos do ser humano que, ironicamente, por diversas vezes se confundem.
Aliás, apesar de os termos aqui dentro, a definição dos mesmos vai além da nossa auto avaliação. O bem e o mal são determinados pelo tempo.
O tempo e as coisas que ele traz podem alterar drasticamente os significados. O bem e o mal são fluidos, quase líquidos. Em alguns momentos, se solidificam. "Isto é um horror, ele deveria ser preso". Em outros, viram gás. "Lei legaliza uso de maconha". 
Poucas coisas nesse mundo louco são definitivas. Se é que há alguma coisa de fato definitiva. Mas o bem e o mal... o bem e o mal são tão abstratos, mas muitas vezes cremos tanto neles, que se torna duro transitar entre os dois. 

Nos pautamos em verdades. Nos pautamos em definições, em alicerces, em crenças, na fé. "Não creio em nada, não tenho fé em nada." Mas isto é o que eu penso. O que eu faço é bem diferente. Não há vida se não há crenças, se não há fé. Não importa no quê.
Só que cremos e temos fé em verdades inquestionáveis. Cremos no bem, temos fé na derrota do mal.
Só esquecemos que eles não são constantes. Temos que flexibilizar nossa crença e nossa fé. De outra forma, nos tornamos conservadores.
O conservadorismo é negação. É se negar a enxergar que as coisas mudam e que isso é completamente normal e saudável. É se negar a abandonar o passado, a reciclar o pensamento. 

É essencial se libertar das amarras que nos prendem em nós mesmos. E presos em nós mesmos, se aproximar do outro é improvável. Mas não há vida, também, sem o outro. Nos tornamos humanos quando nos comunicamos. 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Papel em branco. Rabisca, rabisca, nada sai.

Tenta ir pro computador. Pensa, pensa... digita, digita, apaga.

Toma café, atende cliente, fuma um cigarro, tenta de novo.

Nada. Nadinha. Zero.

Lembra, que, como diz o sábio Hemingway, é preciso sentar e sangrar.

E eu sempre sangrei tão bem... Tão fácil, tão natural. E na maioria das vezes doeu, como toda ferida aberta que só pára de desesperar quando estanca. Isso não quer dizer que pare de doer ou a cicatriz não incomode, só quer dizer que o pavor de ver tudo vermelho ameniza. Fica, no lugar, um dolorido profundo, latente.

Sempre usei das letras como um grito, válvula de escape e linha de costura, pra pontilhar a pele e aproximar as bordas da tristeza. Pra trancar ela num lugar menos exposto, mais distante dos olhos. Porque é um comportamento constante meu, doer mais quando vejo, quando penso, quando lembro.

Mas eu percebi, recentemente, que quando muito me dói, me dói mais ainda escrever. Talvez porque a escrita me obrigue a ver, pensar e lembrar. E, nestes casos, ela de grito passa a ser o que me faz torturar. Então eu engulo. Engulo pra ver se some sozinho, se milagrosamente o que passou se transforma em algo que, na verdade, nunca aconteceu.

Eu sei sobre o que eu preciso escrever. Eu sei o que preciso deixar correr, sei que a cura vai se iniciar no momento em que eu deixar desaguar toda essa água vermelha presa nas veias, nos pulmões, no coração, em cada pedaço do corpo e da alma. Mas só de pensar em pensar, dói. E dói mais a sensação agonizante de achar que nunca conseguirei pensar. E estremece o corpo todo perceber que, evitando deixar a mente desabafar sobre a culpa, o medo, a tristeza, o desespero, acabo evitando o desabafo sobre a saudade, a felicidade, as boas lembranças, o carinho e o calor. E estes, estes eu me proíbo de esquecer. Me proíbo de deixar esvair, me proíbo de proibir. Proíbo que todo esse mar de dor afogue o amor, que é dos maiores que se pode ter na vida.

Eu vou escrever, sei que vou. Vou escrever pra liberar a barreira que impede que eu lembre com carinho. É só que a culpa é tão grande, que esmaga todo o resto.

Tem dia que até a vontade de sair da cama é esmagada.


quarta-feira, 13 de abril de 2016

A gente não sabe o quanto as mãos precisam escrever até que falta o ar no pulmão e ele só volta com a caneta entre os dedos.
Poeta nunca serei, nem sei se quero vir a ser.
Quando leio poesia, elas são absorvidas por minha pele; cada letra vai direto para as veias. A corrente sanguínea quase entope com as vírgulas, os pontos, os espaços. Porque no silêncio também há poesia.
Quando bem colocado, aliás, o silêncio pode ser o que dá vida ao escrito.
Mas a questão é: o que leio vai direto ao coração. Eu não acredito que a gente sinta com o coração, acredito que a gente sinta com o cérebro. Quando penso em você, por exemplo, a boca abre um sorriso quase-que-automático. Ora, isso não é obra do coração, é obra do cérebro.
Mas quando eu estou envolta em seus braços, olhando em seus olhos, o processo é parecido com aquele que acontece quando leio: a vida muda um pouquinho. As coisas ao redor tomam outras formas, o pensamento tem seu fluxo alterado, as cores ficam mais intensas, algumas coisas perdem o sentido na mesma velocidade com que outras ganham, inúmeras sensações e sentimentos se debruçam sobre a pele, a barriga, a boca, a cabeça, cada célula.
Isso não é sentimento, não. Isso perpassa o sentimento. O sentimento é aquela coisa que todo mundo diz, que todo mundo acha, que todo mundo tem. O que um poema me causa é a abertura pra um outro universo, é um abraço em forma de papel, que passa os braços por meus ombros e abre minha mente. Uma expansão tão intensa que é impossível voltar ao tamanho normal. Tamanho esse que sempre parece risível quando olho pra trás, depois de um verso, um parágrafo, um livro. Ou depois de um abraço teu.
E é por isso que não quero ser poeta. E nem quero ser pra alguém o que você é pra mim.
Porque é perigoso o (seu) poder de um poeta. 
É uma expansão maravilhosa, mas sem volta.
E quando o livro se fecha ou você fecha a porta, eu fico ali, com novas palavras e novos momentos, que exigem de mim um esforço descomunal para não deixar que virem apenas memórias perdidas nesse meu eu expandido.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Perdi  toda a coragem

Quando te vi ao longe,
                                      acenando.

Dizendo até logo, sem saber que era

                              adeus.

Perdi toda a coragem de continuar

De prorrogar a farsa, a falsa liberdade, a falta de apego...

Ora, se não houvesse o apego, se não houvesse o fogo, se não houvesse o amor,

Não mais estaria aqui. Estátua. Cansada do repetido não, do repetido abandono.

                              adeus.

Me vou, mas não carregue a culpa.

                                                       .Culpa minha. Eu quem me debrucei nessa liberdade da qual
NÃO me libertei.

Me perdoa.

Perdoa, porque eu te fiz acreditar que alimentava o saudável. Mas minhas raízes, por mais espaçosas que sejam, possuem limites.

Um deles, acabei de alcançar.

Então perdoa, porque não posso mais crescer em seu jardim. Mas tua terra, é fértil.

E dela nascerão outras tantas árvores, com raízes menos limitadas.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

É difícil.
É difícil se manter em equilíbrio em um mundo desequilibrado como o nosso.
A esperança se esvai em um piscar de olhos.
Não me culpo por meu existencialismo e minhas crises existenciais.
É difícil se manter são diante de tanta barbárie.
É difícil se manter são.
É difícil se manter.
É difícil.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

As vezes, despimos algumas pessoas.
Tirei, por um segundo, todo o pano
Que te cobria,
Intencionada a não cobrar
Mas sim
Des-cobrir, re-des-cobrir.
Me dispus a despistar
As lembranças doídas
Que dominam sua mente e
Seu peito
Suspeito
Que eu possa ser
Posteriormente
Uma delas.
Não, não há intenção de doer,
Não há intenção de ser lembrança.
Mas, há algumas pessoas
Que nos despem
E, despida, me despeço.
Não há intenção de doer,
Mas dolorida é a sensação
De estar nua,
Crua
Tua
Enquanto o que te cobre
Ainda e até-não-sei-quando
São as doidas lembranças dela.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O não-perdão calado toma forma de angústia
O coração desabotoado é porta de visita
Recebe medos, acasos, apertos
Se força a validar o que não tem valor
Perde força em meio a tantos sufocos
A casa existe, o botão não se achou
Procura abrigo em outra pulsação
Rasga o peito gritando socorro
Socorre na noite o que não tem remédio
Remedia os laços, reforça nós
Procuro, encontro, mas se encontro corro
Me atenho ao imutável, ao tédio
Entediado percebo: estamos todos sós

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Tão rápido quanto a lua vira sol, me tornei tua.
Nua, deitada em teus lençóis brancos e paralisada por teu sorriso brando, me entreguei ao teu bel prazer.
Mas, é como diria Drummond:
"(...) o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será."
Então sossegue, Maria.
Poderão vir as bodas, assim como poderão ficar na imaginação.
Mas isso nunca foi impedimento para esse coração romântico que vos fala: independente das intempéries do futuro incerto, muito me faz feliz reservar-me toda àquele que leva consigo um pedaço de mim.
A caminhada melancólica e vertical assim o é apenas para os que não enxergam em qualquer amor sua profundidade, beleza e poder de combustível.
Que me perdoe, agora, Drummond: o amor, no escuro ou no  claro, no real ou no imaginário, na certeza ou na incerteza, não deve ser triste, não deve doer. Deve ser a coisa mais sutil e alegre, dentre todas as coisas que podemos viver.
Portanto, enquanto há essa chama sua acessa em mim, lembrarei de cada segundo e fantasiarei outros mais, com um peito lotado de barulhos e sensações inefáveis, que a mim só se traduzem em: continue amando com toda a alma, pois é razão de ser e de viver o verbo sempreamar, o verbo pluriamar.*
Nesses casos, volto a concordar com Drummond:

"(...) amor, sublime selo
que à vida imprime cor, graça e sentido."

"Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários."

Amemos, amemos muito. Não há salvação para nós, que não o amor.



*Além da Terra, além do céu - Carlos Drummond de Andrade.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

E guardou para si muitas palavras. Evitou o confronto, preferiu calar e chorar baixinho.
Cada frase que não dizia era um nó na garganta. De tanto nó, quebrou-se o nós.
O não dito se acumula, vai lotando o peito, a boca, a alma. Entristece, enraivece, enlouquece.
Mas nosso corpo e nosso espírito tem um limite não muito grande no que se refere a isso.
Cabem, em nós, poucas dessas amarguras do eu-deveria-ter-dito-isso. A gente incha, infla, lota, transborda.
E num momento qualquer, despretensioso, numa tarde fria, a gente explode. E por vários e longos minutos, diz palavra por palavra, dessas que a gente tanto calou. Parece que perdemos momentaneamente o auto controle e elas simplesmente pulam da boca. Com o perdão da expressão, a gente vomita tudo o que engoliu à força.
E se sente, em certa medida, leve. E essa leveza é essencial para não morrer afogado por letras impedidas de sair. A grande questão é: quando a gente engole, acumula e explode, não seleciona e não controla as sentenças. Sai tudo misturado, com pitadas de raiva, tristeza e decepção - inclusive consigo mesmo.
Não há tempo de digerir antes de colocar pra fora. As chances de mágoa são aumentadas exponencialmente. Portanto, um conselho amigo de quem muito guarda colóquios: mesmo quando a conversa vai doer, menos dolorida é a dor das palavras não guardadas.


Acreditem, não é pouco o número de nós que eu quebrei por achar que meu corpo absorveria o que eu precisava falar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

E brota, de dentro desse jardim de sangue e alma, a felicidade que pele nenhuma pode podar.
Muito vem e
vai.
Do pouco que fica
Tiro tudo o que posso
Aquilo que se
                       despede
Também fica em mim.
Absorvo detalhes,
dou um pouco de mim
a TUDO
o que cruza
o meu caminho.
Quem se foi,
Talvez,
Não volte nunca mais.
Quem chega,
Talvez,
Não queira ir nunca mais.
Não importa a quantia de tempo:
Importa o que
REPRESENTA.

A gente espera muita coisa da vida. A gente marca coisas, faz planos, paga com antecedência, brinca constantemente de previsão de futuro.
Nos permit[im]os muito pouco a experiência da surpresa, dos atos sem roteiro, de não estar sobre o controle de tudo.
Mas devemos deixar a vida correr seu curso natural, com a mín[im]a interferência dessa mania de previsibilidade, pois algumas [im]previsibilidades podem mostrar que a vida é muito mais que os planos que traçamos para ela.
Ela é um fluxo ininterrupto, contínuo, fluido e surpreendente de acontec[im]entos. Ora tristes, ora felizes.
Como o espectro de um [im]proviso de guitarra, ela tem seus altos e baixos, que se delineiam ao bel prazer do músico, que sabe, no fundo da alma, o que cabe ao som.
A vida sabe o que cabe a nós. E reserva notas e acordes incríveis. Mas devemos estar de ouvidos atentos para gravá-los e, mais do que isso, dançarmos ao som dessas deliciosas [IM]presivibilidades.
Deixemos a vida soar como um free jazz, longe das amarras teóricas, sem regras, com a ansiedade de saber que o que está por vir é único.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Que eu possa
                     discorrer
Palavras no canto
              do seu
ouvido
Que eu possa
                     escorrer
O suor
             do teu
alívio
Que eu possa
                     escorregar
Minhas mãos
              em tua
boca
                         em tua
        nuca
                                    em teus
                ossos
                                                em tua
                          alma
Com calma
                  Solidificar o laço
Secar tuas lágrimas
Te deixar nu
                  Vestido de amor

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Se lapidar vira diamante
Se travestir vê sorriso
Se mascarar vai adiante
Se esconder fica vivo

Se não falar é aceito
Se enganar é alívio
Se odiar é perfeito
Isso evita dilúvio

Se fingir que não, está salvo
Se tiver fachada é ágil
Se for visto desce do salto
Se amordaçar é mais fácil

Se não for, não apanha
Se quiser ser, melhor não
Há quem diga que é manha
Eu acho que não é opção
I've killed my demons, one by one, all by myself, just like you said.
You said that couldn't help me killing them, cause it was my job. And now I agree.
But I just don't know what to do with this pieces of demons inside me. I'm writing to ask help to clean up this mess.
I've tried to spit it, to swallow it, to scream it, to absorb it, to forget it. But this little pieces still here talking to me when I try to sleep.
This demons of sadness and loneliness are broken, but still around.
So I only ask you one simple thing: get into me, then they will not have space and will disappear.