segunda-feira, 12 de junho de 2017

"Se eu escancarar minhas portas você entra?"
Disse ela em tom gemido, enquanto ele se deliciava com a cabeça no meio de suas pernas.
Lambe os lábios molhados e responde:
"Não há porta tua que eu não queria adentrar."
E lambe seus lábios, abrindo-os.
Ela grita e se contorce. 
"E uma vez lá dentro, promete sempre renovar o desejo de me desbravar?"
Ele toma fôlego, sobe por sua barriga e seios, com beijos demorados.
Aproxima sua boca de seu ouvido, penetra lentamente um dedo naquele espaço quente, inchado, pulsante; e sussurra: 
"Posso te desbravar para sempre".
Ela lhe dá um beijo forte, quase desesperado e goza enquanto ele se delícia dentro dela, olhando no fundo de seus olhos.
Ele goza junto, enquanto ela o acaricia selvagemente. 
Os dois se entregam e se abraçam.
E  dormem. Porque ali é só o começo.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Já muito planei quando devia andar.
Já muito caminhei quando devia voar.
Já muito escondi quando devia lutar.
Já muito ansiei quando devia calar.
Já muito corri quando devia sentar.
Já muito ataquei pra não me machucar.
Já muito fui leviana quando devia amar.
Bati muito as asas em tempo irregular.
Tive dó de mim por não chegar lá.
Já muito fui sol e só fiz me queimar.
Já muito dei ré só pra não avançar.
Já muito improvisei pra não me culpar.
Já muito calei pra não semitonar.
Fui compasso composto quando devia simplificar.
Inventei sustenidos pra me aumentar.
Não fechei partituras com medo de acabar.
Inventei pausas e pausas pra poder respirar.
Pus ponto de aumento pra poder prolongar.
Encerrei antes do tempo pra não machucar.
Compus melodias que não pude tocar.

Sou acidente ocorrente.
Ora semifusa em um mar de semibreves, ora semibreve em compasso 4/4.
Sou nota que corre solta na partitura e a maestria da vida me permite errar.
Sou regente da minha melodia e me permito experimentar.
Hoje já não mais me vejo obrigada a sempre alcançar o tom. 

Bem diz Guimarães Rosa que

"O senhor... mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão."

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Não me declaro escritora, muito menos poetisa. 
Não escrevo por títulos, nem honorários, nem motivo quase nenhum além do fato de que escrevo para (sobre)viver.
Parece exagero, mas eu bem sei que tem gente que morre de não dizer.
Guarda, guarda, ignora, deixapralá. Mas acumula tanto, que o peito incha e explode.
Tem quem diga que é morte morrida. Eu tenho certeza que é morte não dita.
Mas tem horas que, como esta agora, eu escrevo pra fazer rodeios. Pra adiar o inadiável e sentir que, mesmo não indo direto ao ponto, pelo menos circulei o alvo. 
Quando, a título de auto avaliação, releio as palavras que joguei no papel, mesmo os textos de rodeio me fazem lembrar do que eu queria dizer. E isso, as vezes, já me basta.
Ao remeter o acontecido, o sentido, o desejado, o imaginado, ele toma forma. Um tanto quanto deformada, mas, ainda assim, se torna desabstrato. 
E, ao que tudo indica, sou boa em rodeios. 12 linhas cheias de letrinhas e nada de conteúdo.
Mas me sinto um pouco menos inchada. Menos próxima da explosão. 
Será que, quando a gente morre de morte não dita, quando viramos caquinhos, são esses caquinhos letras? Ou notas musicais, que, colocadas de forma correta na partitura, formam músicas com as palavras que engolimos? 
Será que a gente vai prum lugar cheio de espelhos e faz que nem em vida, ensaiando pra nós mesmos o que queríamos falar pros outros?
Acho que não quero saber agora, não. É por isso que escrevo. (In)cansavelmente. 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Foi naquele São João que a vida toda da moça que vos escreve mudou.
Naquele São João tão frio, que até névoa se formou no céu azul escuro. O esbranquiçado lá no alto parecia a fumaça gelada que saía da boca quando a gente cantava em volta da fogueira laranja.
E pensar que a vila é tão pequena, que não tem um que não se conhece desde sempre. Tem uns forasteiros, que vem de longe procurar nossa calma. Mas eles acabam virando tão queridos, que é difícil achar que não os conhecemos desde sempre também.
Ele eu de fato conheci de pequena. A gente brincava junto na lama, se banhava junto no rio. Andava de bicicleta e ralava o joelho. Comprava pão e corria pra casa tomar café da manhã. Eu lembro até que, a primeira vez que empinei pipa, foi com ele. A gente tinha uns 6 anos e tava com o corpo duro de tanta lama seca. As rachaduras formavam desenhos na pele e traduziam um pouco da felicidade daqueles dias.
A criançada toda se reuniu na rua, com os olhos brilhando ao ver, pela primeira vez, aquele brinquedo mágico feito de papel e palito de churrasco. Mas o mais incrível era a rabiola, feita de saco de lixo. Aqueles pedaços pretos, recortados para voar e balançar no ar, eram a definição de alegria. Não lembro ao certo se foi um forasteiro ou algum de nossos parentes que trouxe a tal pipa, o que sei é que passamos longas horas dirigindo aquilo pelo ar, controlando seus movimentos, sua altura e seu balançar. E ríamos a cada vez que o vento parecia cessar de propósito, fazendo ela cair e levantar poeira nos nossos olhos pequenos.
Fomos crescendo e começamos a estudar. A escola daqui não é como a escola de lá. Aqui, os adultos juntam seus conhecimentos, seus livros, suas histórias e lendas, explicando de forma simples e pura tudo o que sabem. E tudo o que acham que é importante que saibamos, seja pra continuar ali na vila, seja para se jogar no mundo. Nos reuníamos na pracinha todo dia, sentados sobre os próprios pés, ora em forma de roda, ora em grupos, ora em qualquer posição que desse pra escutar todo mundo. Passávamos ali boa parte do dia, entre conversas, comidas, sonecas e muita brincadeira. Assistíamos ao pôr do sol juntos, agradecendo por mais um pôr do sol. E seguíamos correndo para casa, com nossos pés ou as rodas de nossas bicicletas.
Lembro claramente de sempre nos sentarmos um ao lado do outro, não importasse a formação que escolhêssemos. Era sempre confortável, sempre confortante tê-lo tão perto.
Nunca falamos sobre isso. Só nos sentávamos, automaticamente, de formas que nossos corpos se esbarrassem a qualquer movimento que tomasse um diâmetro maior.
Todo o conhecimento que absorvi dessa época, guardei bem guardado aqui dentro de mim. Até pouco depois desse São João frio, tinha usado-o aqui na vila. Me tornei professora das novas crianças que vieram depois de mim e sempre me bastou viver aqui, educando as crianças na esperança de que elas educassem o mundo.
Ele também permaneceu. Se tornou marceneiro e toda madeira da vila que era tocada pela natureza, também era por ele. Fazia barcos, janelas, portas, balcões. Aprendera com orgulho e maestria a profissão de seus pais. Perpetuou as tradicionais entalhações que lhes eram marca registrada e enfeitavam a vila de forma sutil e poética.
Virar adulto as vezes afasta a gente do outro. Parece que a maturidade e as responsabilidades trazem consigo paredes invisíveis que eclodem entre as pessoas. Mesmo em comunidades tão ao ar livre quanto a nossa. Em resumo, nos falávamos socialmente, quando eu precisava que ele escrevesse em alguma madeira ou quando nos cruzávamos na padaria. Banal.
Mas naquele frio São João, as paredes implodiram. Eu ainda não sabia, naquele momento, que não voltariam a subir.
Olhar para o céu naquela noite estava especial. A névoa se misturava com a tinta azul escuro que pintava o infinito e era possível enxergar pequenas faíscas do fogo, que enfeitavam a imensidão.
As crianças corriam, os adultos se sentavam ao redor da fogueira contando causos novos e antigos, fazendo espetos de marshmallow derretido. As comidas eram sempre fantásticas. E a gente só percebe quão saboroso e incrível é o gosto do natural, quando se pega comendo o que querem que a gente coma. Não há nada como o gosto da terra, da água, do sol. Nada como o gosto das mãos que tocam o alimento, sabendo que nele há vida.
Enquanto eu pegava um espeto da fogueira, senti alguém se aproximar e sentar ao meu lado no banco.
Retornei o corpo e ele inteiro sorriu, não consegui disfarçar. Era ele e, por algum motivo, me senti tão confortável quanto me sentia nas aulas. Só por ser ele.
O corpo dele também sorriu. E seu rosto se abriu em um sorriso limpo, puro e inacreditavelmente sincero.
Ofereci um marshmallow e, encantada, observei-o comendo com gosto, feito criança.
Elogiamos o céu, agradecemos por ter sido criados na vila, comentamos sobre Gabriela, que acabara de se casar com Pedro e ambos se mudaram de lá. Até que ele me perguntou:
"E aí dentro, não há vontade nenhuma de sair daqui e desbravar o mundo?"
Estremeci. Essa pergunta sempre esteve em mim, mas nunca havia sido entoada em voz alta. Ele fez a vontade que parecia imaginação, virar realidade. Me demorei em seus olhos e respondi, trêmula, que pensava nisso com certa frequência.
Ele riu e pediu que eu não me preocupasse, a mesma vontade rondava seus pensamentos e não era ingratidão querer sair da vila. Ingratidão era permanecer mesmo quando ela não cabe mais em nós.
Me senti abraçada. Me perguntei como essa conversa só tinha acontecido agora. Me aborreci, quieta, por essas paredes que criamos ao crescer. Mas agradeci por elas terem ido embora.
Continuamos conversando. Estava tarde e no dia seguinte acordaríamos cedo. Ele sugeriu me levar até em casa e começamos a caminhar.
Dentro de mim, começou a surgir um medo enorme de voltar àquela realidade costumeira, onde nos cumprimentávamos socialmente e cada um ficava no seu canto. Eu queria mais. Não sabia ao certo o que eu queria, mas era mais. Queria que as noites de São João se repetissem, sempre com ele sentado ao meu lado, de frente para o fogo.
Como se adivinhasse meus pensamentos ou compartilhasse deles, parou na estrada, olhou em meus olhos e pediu:
"Não voltemos ao que éramos antes. Não quero que sejamos rasos, quero profundidade. Quero poder sempre olhar nos seus olhos e rir sobre a vida."
Em um impulso, beijei-o. Não sabia se era certo e se ele relutaria. Mas ele se entregou e se aproximou, envolvendo seus braços no meu corpo e as mãos no meu cabelo. Isso provocou em mim algo que eu nunca havia sentido. Senti faíscas, senti euforia, senti conforto, segurança, senti amor.
Não sabia, no momento, que era amor aquela mistura de sentimentos, sentidos e emoções. Mas fui descobrindo aos poucos.
A cada cruzada de olhar que dávamos durante o dia, cada visita ao rio de noite, cada madrugada na cama, cada café da manhã sob o sol, cada novo plano sob a lua.
Era paixão, da mais sincera que eu poderia experimentar. Mas queríamos mais. Queríamos gritar pro mundo, correr nas praias, viajar pelas estradas, conhecer outras comidas, olhar outros céus.
Entendemos, conjuntamente, que a Vila não cabia mais. Que tínhamos expandido nossos universos e era questão de sobrevivência colocar essa expansão na prática.
Nos despedimos de todos na beira do rio, à luz de velas, com muita música. As lágrimas de saudade eram, ao mesmo tempo, de libertação. Aquele era o último momento antes de começarmos uma caminhada fantástica.
Hoje é dia de São João. Ele está com nossos filhos correndo em volta da fogueira. Decidimos retornar à Vila em todos os dias de São João que fossem possíveis.
Porque foi naquele São João que a vida toda da moça que vos escreve mudou. E a vida do moço que observo, também. 

terça-feira, 26 de julho de 2016

Do meu corpo, o tempo todo, tentam fazer morada.
Mas nem todas as vezes é pedida permissão para chamá-lo, tocá-lo, adentrá-lo.
Algumas vezes é um professor do primário, um conhecido da faculdade, outras um desconhecido na rua, outras mais, um desconhecido na balada.
E por tanta gente tentar entrar sem bater, cuspindo elogios que eu não pedi, fazendo carinhos que eu não assenti e passando limites que eu não admiti, que eu tenho m e d o.
Qualquer viela escura é uma tortura para passar de noite sozinha. Qualquer saia curta pode ser entendida como um convite. Qualquer foto nua me faz uma vadia.
E de vadiagem em vadiagem, de saia em saia, de viela em viela, o abuso é uma constante.
E se já não bastasse tudo isso, sou o b j e t o . Sou máquina de lavar louça, máquina de cuidar de filho, máquina de sexo, máquina de cerveja. Máquina, máquina, máquina.
E ai de mim se não estiver magra, sem celulites, sem preencher sutiã 46, sem marquinha de biquíni, sem depilação em dia. Qualquer gordurinha, qualquer pelinho, qualquer vontade própria, qualquer libertação, qualquer foda-se que eu der pro mundo, não sou feminina, não sou mulher, não sou bonita, não sou d e s e j á v e l.
Deixo de ser máquina, máquina, má qui na.
Vomito, vomito, vomito. Paro de comer, tenho que malhar. Paro de beber, tenho que me operar. Tenho que encaixar na calça 34, no sutiã 54 e ainda servir jantar com cerveja.
Mas engordei um quilo, que homem vai me querer assim? Como alguém vai gostar de mim? Como vou engravidar, se não consigo nem me cuidar?
Mas eu não quero ter filhos. Já engravidei e abort shhhhhhhhhhh, ninguém pode saber dessa vergonha. Na hora tava bom, né?
Eu devia ter continuado a gravidez. Hoje eu teria 21 e ele cinco, quase seis. Eu teria parado de estudar, não teria ido viajar, estaria em casa botando ele pra dormir. Teria desistido de vários sonhos, deixado de conhecer várias pessoas, mas pelo menos teria sido mulher de verdade, capaz de assumir.
Eu tomava anticoncepcional e tomei cuidado, mas sabecomé, a culpa é minha e só minha e só m i n h a.
Aliás, culpa deve ser um sentimento que tem alvo determinado. Porque é incrível como ser mulher causa esse negócio na gente.
Se eu saio na viela escura, com uma saia curta e tenho foto nua, se alguém invadir minha pele sem que eu queira, a culpa é minha. Se eu saio da dieta pra num desmaiar de fome, a culpa é minha. Se eu não tenho dinheiro pro silicone, a culpa é minha. Se eu não sou como a mulher da propaganda de cerveja, a culpa é minha. Se, com 16 anos, eu sou incapaz de ter um filho, a culpa é minha. Se eu não encontro um homem para casar e ser a dona do nosso lar, a culpa é minha. A culpa é minha, a culpa é minha, a culpa é m i n h a.
Mas, sabe... de tanto ser vadia, puta, desleixada, fraca, inútil, desbocada, gorda e mal amada, percebi que sou o melhor que posso ser. Percebi que essas palavras, na minha boca, no meu eu, na minha concepção, tem outros sentidos. Tem outros s i g n i f i c a d o s.
E se isso é uma luta diária e cansativa, se fazer todo mundo entender que a gente tem que ser como quiser é uma batalha eterna, que batalhemos. Que usemos nosso corpo, nossa voz e nossa vontade de mudar como armas e escudos. Porque aqui, ninguém mais vai mandar em mim, ninguém mais vai tentar me invadir sem me ouvir GRITAR.