terça-feira, 26 de julho de 2016

Do meu corpo, o tempo todo, tentam fazer morada.
Mas nem todas as vezes é pedida permissão para chamá-lo, tocá-lo, adentrá-lo.
Algumas vezes é um professor do primário, um conhecido da faculdade, outras um desconhecido na rua, outras mais, um desconhecido na balada.
E por tanta gente tentar entrar sem bater, cuspindo elogios que eu não pedi, fazendo carinhos que eu não assenti e passando limites que eu não admiti, que eu tenho m e d o.
Qualquer viela escura é uma tortura para passar de noite sozinha. Qualquer saia curta pode ser entendida como um convite. Qualquer foto nua me faz uma vadia.
E de vadiagem em vadiagem, de saia em saia, de viela em viela, o abuso é uma constante.
E se já não bastasse tudo isso, sou o b j e t o . Sou máquina de lavar louça, máquina de cuidar de filho, máquina de sexo, máquina de cerveja. Máquina, máquina, máquina.
E ai de mim se não estiver magra, sem celulites, sem preencher sutiã 46, sem marquinha de biquíni, sem depilação em dia. Qualquer gordurinha, qualquer pelinho, qualquer vontade própria, qualquer libertação, qualquer foda-se que eu der pro mundo, não sou feminina, não sou mulher, não sou bonita, não sou d e s e j á v e l.
Deixo de ser máquina, máquina, má qui na.
Vomito, vomito, vomito. Paro de comer, tenho que malhar. Paro de beber, tenho que me operar. Tenho que encaixar na calça 34, no sutiã 54 e ainda servir jantar com cerveja.
Mas engordei um quilo, que homem vai me querer assim? Como alguém vai gostar de mim? Como vou engravidar, se não consigo nem me cuidar?
Mas eu não quero ter filhos. Já engravidei e abort shhhhhhhhhhh, ninguém pode saber dessa vergonha. Na hora tava bom, né?
Eu devia ter continuado a gravidez. Hoje eu teria 21 e ele cinco, quase seis. Eu teria parado de estudar, não teria ido viajar, estaria em casa botando ele pra dormir. Teria desistido de vários sonhos, deixado de conhecer várias pessoas, mas pelo menos teria sido mulher de verdade, capaz de assumir.
Eu tomava anticoncepcional e tomei cuidado, mas sabecomé, a culpa é minha e só minha e só m i n h a.
Aliás, culpa deve ser um sentimento que tem alvo determinado. Porque é incrível como ser mulher causa esse negócio na gente.
Se eu saio na viela escura, com uma saia curta e tenho foto nua, se alguém invadir minha pele sem que eu queira, a culpa é minha. Se eu saio da dieta pra num desmaiar de fome, a culpa é minha. Se eu não tenho dinheiro pro silicone, a culpa é minha. Se eu não sou como a mulher da propaganda de cerveja, a culpa é minha. Se, com 16 anos, eu sou incapaz de ter um filho, a culpa é minha. Se eu não encontro um homem para casar e ser a dona do nosso lar, a culpa é minha. A culpa é minha, a culpa é minha, a culpa é m i n h a.
Mas, sabe... de tanto ser vadia, puta, desleixada, fraca, inútil, desbocada, gorda e mal amada, percebi que sou o melhor que posso ser. Percebi que essas palavras, na minha boca, no meu eu, na minha concepção, tem outros sentidos. Tem outros s i g n i f i c a d o s.
E se isso é uma luta diária e cansativa, se fazer todo mundo entender que a gente tem que ser como quiser é uma batalha eterna, que batalhemos. Que usemos nosso corpo, nossa voz e nossa vontade de mudar como armas e escudos. Porque aqui, ninguém mais vai mandar em mim, ninguém mais vai tentar me invadir sem me ouvir GRITAR.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Respeitável público!!!
Damos início esta noite ao maior espetáculo circense que a sociedade já viu!
Mas no nosso circo, o palhaço é você. Tente tirar muito proveito desta experiência única, porque o ingresso não foi barato, não! Além disso, na saída cobraremos taxas, encargos e outros valores ilusórios, que disfarçaremos de colaborações por bom serviço prestado.
Não se acanhe, passamos cartão e parcelamos em 10 vezes.
Mas não pense que o circo nunca fez nada parecido. É fato que, para montar este esplêndido espetáculo que estão prestes a vivenciar, muita pesquisa foi feita e muitas referências usadas.
Pensando bem, dependendo de quem você é, o que você faz, de onde você veio e quanto dinheiro tem na conta, o formato que propomos não é tão estranho à você ou às gerações anteriores às suas.
Dependendo dessas mesmas características, você pode ter sido, ainda ser ou ser mesmo que sem querer, parte do nosso majestoso elenco.
Agora, sem mais delongas, estou ansioso para começar o fantástico espetáculo, que vibra com cenas de pobreza extrema, preconceito religioso, racial, sexual, econômico, se diverte com fortes cenas dramáticas causadas pela fome, além de torturas inacreditáveis e muito mais!

Sejam muito bem vindos ao espetáculo M.U.N.D.O.
Os poros da pele se abrem lentamente. Os pelos se levantam. A espinha esfria, o corpo treme aos poucos.
A pele na pele esquenta cada pedaço de mim. É quase um teletransporte. Saio do mundo e entro em nós. Nos entrelaçamos como dois animais sedentos por contato, por suor, por gozo.
É instintivo querer te puxar para dentro de mim, querer que você seja uma parte do meu eu.
Sabe, tenho poucos vícios... A maioria se mostra, ao longo do tempo e com o desgaste da fixação, mero hábito. 
Alguns até causam certa abstinência quando chega a hora de largar, mas em todos estes casos o suor frio e as crises de choro que a falta faz valem mais a pena do que as amarras e cortes materializados pela presença.
Os vícios saudáveis, mesmo que um dia se mostrem hábitos também, acabam se tornando riscos na pele. 
Gosto da dor. Gosto da dor das tuas mãos apertando minha carne, gosto da dor dos teus dentes cerrando meus lábios. Gosto da dor da tua palma na minha bunda. Me contorço, grito, molho.
E gosto, também, da dor da marca na pele e na alma. A tatuagem na pele é a materialização de algumas das coisas que têm tanta importância, que me parece justo eternizar nas paredes do templo.
Mas existem coisas, como você e seu poder sobre mim, que se concretizam por meio de tatuagens na alma.
Não sei se para sempre ou até quando, mas teu toque, teu cheiro, teu gosto e teu eu me viciaram. É droga das pesadas. A ausência provoca pequenas crises de abstinência que, até agora, só me excitam a querer mais e mais. 
E é por esse poderio - que poucas pessoas conseguem ter sobre mim, porque fui adquirindo ao longo das relações uma incrível capacidade de imunidade -, que você deixou marcas. 
E tudo é efêmero, menos as marcas que as coisas pessoas cheiros toques gostos gozos deixam em nós.
E você marcou como poucos. Até desisto da minha imunidade se for para ter você ao lado.